Resenha Beats │Não consagramos clássicos à cappella
por Ana Rosa
Retomo essa coluna quase um ano depois do primeiro texto, destinado a discutir sobre o porque a cena Hip Hop não valoriza seus produtores, para tentarmos entender porque muitas pessoas não souberam a dimensão da live que envolvia DJ Premier e RZA, dois grandes ícones do Hip Hop mundial.
Atualmente, na era da informação e da facilidade da distribuição musical, é até engraçado pensar como são encolhidos os créditos aos trabalhos de todas e todos por trás de uma músicas de sucesso, geralmente do mainstream, já que no underground é basicamente todo mundo fodido por igual. Quando alguém fã de outros gêneros musicais pensa em rap, o papel inconsciente conectado ao gênero é a figura da ou do rapper. Essa conexão não existe sem razão, pois se pensarmos no início dos movimentos que originaram o Hip Hop, durante muito tempo, muitos MC’s foram o rosto do Hip Hop, embora a forma de arte ainda estivesse em sua infância, o MC teve um papel importante na história, mais do que um exagero, a versão inicial de um rapper era manter as festas, block parties, animadas em apoio à verdadeira estrela, o DJ.
Nos últimos dias, devido a quarentena mundial estabelecida por conta do combate a proliferação do vírus Covid-19, muitas e muitos artistas promovem lives para entreter os fãs entre outros motivos. No passado fim de semana, tivemos uma live épica, a "batalha" de clássicos, entre duas lendas. Premier e RZA se enfrentaram pela série Verzuz, lançada por Swizz Beatz e Timbaland em março. Tive o start de começar a escrever esse texto, pois vi comentários nas redes tratando com desdém a live proporcionada por ambos. Não sei se porque eu potencializo todos meus ídolos, mas pra mim conseguir tocar 2 horas com sons produzidos por eles próprios, sons que fazem parte da história do Hip Hop, já é algo extremo, segundo, dois homens negros com seus 50 e poucos anos, vivos, se exaltando e se divertindo é muito simbólico dentro da cultura Hip Hop. Aliado a isso, vem o incômodo que sinto quando tratamos de grandes clássicos do rap, e que se não tivermos um amigo DJ, produtor ou beatmaker, raramente nós nos aprofundamos no quesito instrumental/beat do som, e ficamos apenas com a visão da ou do MC rimando. Esse artigo tem a pretensão de ser uma chamada a descobrirmos mais, e apreciar um trabalho de forma mais profunda. Não tenho a pretensão de trazer um trilhão de informações novas porque pra mim também é tudo bem recente, e muitas coisas são resultados de um tempo de mudança e esforço na forma de consumir música.
Nem sempre foi assim ...
Uma das primeiras grandes revoluções do Hip Hop foi liderada pela arte dos DJ's, as inovações e técnicas que marcaram o começo de uma nova era musical.
Conforme você pode ler mais no site "Assim que rola", na década de 40, mais precisamente na segunda guerra mundial, por causa dos altos custos para enviar uma banda completa, as tropas recebiam visitas de DJs, a ideia em resumo era alegrar os soldados. Isso fez com que os elevados preços dos toca discos acabassem despencando, e que se tornassem mais acessíveis e populares. Chegamos então até o DJ Kool Herc e suas block parties no Bronx, e entre as reproduções dos discos de funk, ele resolveu inovar, com seus dois toca discos e um amplificador de guitarra, entre uma música de James Brown e outra, ele começou a isolar a parte instrumental das faixas, mudando rapidamente entre um break e outro.
Posteriormente, na década de 90, o termo "turntablism", arte de manipular sons e criar música usando toca-discos fonográficos e um mixer de áudio, foi criado pelo DJ Supreme, para diferenciar o DJ reprodutor de músicas e o que performatiza, movendo os discos para manipular um som. Nos anos 90, o turntablism alcançou novos níveis de atenção. DJs dedicaram-se a aprimorar gradualmente a prática e expandiram-se por conta própria, novos DJs, turntablists e equipes devem muito à Kool Herc, Grand Wizard Theodore, Grandmaster Flash, DJ Jazzy Jeff, Afrika Bambaataa e outros DJs que originalmente desenvolveram muitos dos conceitos e técnicas que evoluíram para o turntablism moderno. As técnicas e uso de samples de discos dos turntablistas, na época, já parecia ser uma prática muito mais inovadora do que qualquer coisa que os MC's estavam fazendo na época. Eventualmente, o potencial artístico e os vocais significativos sobre as batidas criadas, tornaram-se evidentes e os MCs começaram a abraçar o papel de ser um letrista. A união de DJs, produtores criativos e MC's articulados deu origem à “Golden Era” do Hip Hop, composta por músicas do final dos anos 80 até meados dos anos 90. Desde então, os rappers foram se distanciando da estrutura total de uma música, e até mesmo tentando se destacar da cultura como um todo, e assumindo uma postura de serem os únicos protagonistas do trabalho final. Esse movimento sempre me incomodou, porque penso eu, que boas batidas salvam letras mais ou menos, mas batidas ruins são capazes de tornar letras legais, verdadeiros lixos sonoros.
A indústria musical e a supressão dos produtores e beatmakers
Segundo o livro que utilizei como referência Making Beats: The Art of Sample-Based Hip-Hop, de Joseph G. Schloss, beats são colagens musicais de pequenos segmentos de som, que se unem a rima para formar o rap. Essa divisão do trabalho deriva do que foi exposto anteriormente, que consistia em apresentações ao vivo nas quais um DJ tocava as seções mais rítmicas de discos populares, acompanhadas por um mestre de cerimônias, um MC, compartilhando informações locais e mostrando suas próprias habilidades no microfone. À medida que o Hip Hop se expôs para outros contextos, principalmente o comercia, ambos os papéis se tornaram um pouco mais complexos. Os MCs começaram a criar narrativas cada vez mais envolvidas, usando letras e flows complexos. E os DJs continuaram fazendo arte nos toca-discos quando tocavam ao vivo, outra parte também desenvolveu outras estratégias para uso em estúdio, e progressivamente incluíram o uso de samples. À medida que essas metodologias de estudo e práticas ganhavam popularidade, os DJ's que as usavam ficaram conhecidos como produtores.
Print de um tweet de LR Beats de 09/2018. |
Destaco em diálogo com esse tweet do beatmaker LR Beats, o texto "A desvalorização do beatmaker no Brasil", do portal Beatmakers Club, que pode ser conferido aqui. Ambos materiais tratam sobre uma questão essencial para o "apagamento" dessa parte essencial dos sucessos, a questão da profissionalização da parte dos beatmakers, aliada também a profissionalização das e dos MC's na questão do registro das músicas. Sim, além de alguns valores absurdamente baixos de beats, por exemplo, existe a questão da porcentagem dos royalties, ISRC (Standard Recording Code) e afins. No cenário atual, percebo que muitos produtores além de serem mal remunerados no início, quando o som estoura, não recebem seus valores referentes a royalties. Esse ponto é essencial de ser trabalhado, pois é uma grana que volta para o trabalho e pode proporcionar uma visibilidade importante para o artista continuar trabalhando. É importante também que as e os MC's se percebam como parte de um processo, e não como estrela única protegydah e poderosa. É um saco lidar com ego de artista que não reconhece o coletivo por trás da cortina como essencial para seu trabalho deslanchar.
Hoje, o Hip Hop é uma cultura diversificada e viva que utiliza uma variedade de técnicas e abordagens para atender muitos grupos específicos, seja no seu berço americano ou no resto do mundo. Essa diversificação das vertentes do rap, vem também muito influenciada pelo mercado musical e sua forma de monetizar uma cultura popular, e também as especificidades das exigências que cada sociedade pede. O poder estético, social, cultural e político oferecido por um rap, ou música no geral, não pode ser desvinculado do fato que o mundo adota o Hip Hop porque o Hip Hop, através da lógica de sua produção, se torna cada vez mais o mundo.
Não podemos deixar de lado a questão enraizada do machismo, a medida que o Hip Hop evolui e enxerga as mulheres importantes na sua história, mais e mais mulheres estão entrando também no jogo da produção. A proporção de gênero ainda não é igual, mas muito mais mulheres estão recebendo créditos de produção do que quando a produtora de Los Angeles, Georgia Anne Muldrow, entrou em cena no início dos anos 2000, conforme entrevista para o The Guardian em 2008, para Georgia, hoje em dia esse espaço apesar de precisar ser conquistado, é também proporcionado para que muitas mulheres se destaquem por sua qualidade.
Mesmo com todos os empecilhos, permanece um vínculo surpreendentemente próximo entre os produtores do mundo todo, independentemente da distância geográfica ou social. Eles se vêem como uma categoria separada, que executam uma tradição frequentemente ignorada e esquecida.
Existem artistas gigantes e importantes por trás de grandes clássicos
Retomando a questão da live do DJ Premier e RZA, analisem abaixo a lista de sons reproduzidos, percebam como é importante que acompanhemos produtores entre outros profissionais para que conheçamos mais e mais músicas de qualidade. É impossível não olhar a lista de músicas e falar CÊS SÃO OS BIXÃO MEMO HEIN. Impossível não valorizar e exaltar que os sons abaixo só são clássicos e despertam isso, porque além dos vocais importantíssimos dos artistas, tem produções sensacionais.
Se pensarmos na questão nacional, é muito comum também que os MC's, principalmente da cena independente, produzam também suas músicas. Destaco a nível nacional, o trabalho do importante produtor Fábio Macari, que morreu em 2012, e foi responsável por grandes clássicos do Rap Nacional, como o disco Direto Do Campo De Extermínio (2003) do Facção Central, bem como Realidade Cruel, Sistema Negro, GOG, Filosofia de Rua, RPW, entre outros importantes contribuintes do rap nacional. Macari foi vencedor do prêmio Hutúz, como melhor produtor musical. Outra questão importante para se pensar, premiações nacionais especializadas e sérias fazem muita falta, para consagrar trabalhos e registrá-los na história. Mas esse é um assunto para outro texto.
Como tentar amenizar essa questão?
Pesquisas simples demonstram um compromisso profundo com a tradição do Hip Hop, entre os que trabalham seriamente com a música, ao mesmo tempo em que fornecem despretensiosamente matéria-prima para a expressão artística do rap. Entretanto, pesquisas mais profundas, nos mostram que para ser beatmaker, produtor, entre outras atividades, exigem uma educação musical extremamente ampla, que ajuda a contextualizar o Hip Hop dentro de tudo que se faz. Além disso, é uma atividade estudos sobre práticas, uso de samples, principalmente no que tange a ética e estética. Esse artigo representa uma comunidade de artistas, que exercem uma pressão moral para preservar uma estética valorizada. E ao mesmo tempo, a relevância contínua do rap, exerce pressão moral recíproca para preservar a comunidade.
É nosso dever, enquanto mídias, consumidores de rap e Hip Hop, proporcionar um sistema ético ao tratar com produtores e beatmakers. Além de espaços como o SoundCloud e as mídias sociais dos artistas, busquem também sugestões no Bandcamp, e blogs especializados. Pesquisar e exaltar seus feitos, contribuições, assim também desenvolvemos outros setores que tratam sobre Hip Hop, não somente o musical.
aplaudindo de pé
ResponderExcluirTexto do karaioooooo
ResponderExcluirNão é de hoje que produtores e beatmakers são desvalorizados, quem nunca ouviu um "oh mano, é o rap né" quando fala um preço de um beat out fica dando entender que ganha beat de graça e você tem que fazer o mesmo?