DJONGA & CRISTAL | O que 'Deus Dará' nos ensina? | Resenha



Em 13 de março, assim como em seus últimos 3 álbuns, o rapper mineiro Djonga lançou “Histórias da minha área”. O álbum tem 10 faixas, 9 produzidas pelo seu parceiro Coyote e uma produzida pelo paulista Renan Samam. 


O quarto álbum do rapper mineiro estava sendo muito aguardado, tanto que as 10 faixas do álbum já acumulam 17,5 milhões de views no Youtube. 

Porém nessa publicação não pretendo falar do álbum por completo. Quero falar sobre a faixa “Deus Dará”, que conta com a participação da jovem e mega promissora mc e poetisa gaúcha, Cristal, dona do hit “Ashley Banks”. O som “Deus dará”, é a nona faixa do álbum e é produzida pelo Coyote. E é possível identificar facilmente três temas pilares: Ancestralidade, Família e Prosperidade. 

FAMÍLIA 

Quando eu cheguei nesta faixa, eu fiquei muito na cabeça com a questão de família. Não nesta família ocidental eurocêntrica que se concentra no clichê que família é seu PAI, MÃE e FILHOS. Pois eu havia lido que na visão africana (sem generalizar), a concepção de família é diferente. 

Durante minha pesquisa para buscar referencias, achei o canal Afro Plurais do educador do Benin, Senakpon

O Senakpon tem um vídeo onde ele fala sobre coisas que muitos brasileiros não sabem sobre família africana. Ele como um homem africano quando pensa em família, não pensa só em PAI, MÃE E FILHOS. Ele pensa em: IRMÃOS, TIOS, TIAS, PRIMOS, PRIMAS, AVÔS, AVÓS e todos os seus familiares. Ele complementa dizendo: “pode ter acontecido eventos que separam você, mas na sua memória, na sua veia, você tem ligação com outras pessoas. Isso é o sentido mais amplo da família africana. Porque antes de tudo, uma família esta ligada a uma etnia. Uma etnia faz parte de uma comunidade, e o conjunto disso é que forma a sociedade. Então você tem que entender que seu pai e sua mãe têm ancestrais que não se limita a seus avós.” 

Inclusive o Senakpon diz que em muitos casos, amigos também pode fazer parte de uma família, ou outra família que é amiga da sua família, no fim se torne uma só família. Por conta de sua proximidade, casamentos entre membros de cada família, sua relação de vitórias e de derrotas também. 

Pra quem é de quebrada, talvez tudo isso não seja novidade. Pelo menos pra mim não é tanta novidade assim. Porque quando entendemos que nós somos africanos em diáspora e que costumes africanos estão enraizados em nossa cultura, percebemos que reproduzimos muitos de seus ensinamentos culturais. Essa visão que nós de quebrada temos que onde “come um, come oito”, que casa de “pobre é igual coração de mãe, cabe sempre mais um”, posso estar errado, mas pra mim é influência africana. 

Dito tudo isso, eu pretendo mostrar que a Cristal e o Djonga passam muito disso neste som. 

Observação: Lembrando que o que vai ser dito nessa resenha, não necessariamente representa a visão dos mc’s. Mas é como eu recebi esse som ao ouvir diversas vezes. 

Bora começar logo pelo refrão: 
Deus entregando com uma mão, nós divide com a outraMantendo uma sempre livre você recebe maisTem pra comer e ainda sobra pros kit, pras roupaTrabalho lindo, outros tempos, eu corro atrás de paz 
Deus entregando com uma mão, nós divide com a outra/Mantendo uma sempre livre você recebe mais. 

Nos dois primeiros versos do refrão, o Djonga meio que nos mostra um norte que indica o direcionamento do som. 

Nestes dois versos, o rapper diz que é sempre importante dividir com os seus semelhantes/família as bençãos que Deus nos dá. E que uma mão tem que estar sempre livre para receber essas bençãos para que a outra repasse. Basicamente o rapper está demonstrando que prosperidade e ascensão não podem servir de muleta para esquecer de onde você veio. Porque de onde você veio, tem que mostrar como e o que você é. E ele complementa dizendo que o ato de ajudar os seus multiplica suas bençãos. 

Crédito das imagens:
Maysa Zucheratto @maysazucheratto 
Roxie @akaroxie

ANCESTRALIDADE 

A parte da Cristal é muito africana, tio! Em seus versos ela faz muita referencia em respeito aos mais velhos, a quem veio antes dela e prosperidade sem esquecer da família. (muito comum em muitas etnias africanas) 

Bora conferir alguns trechos: 
Meus passos vêm de longe e me trouxeram aquiDos preto que já se foram e que tiveram que partirPelas irmã que tiveram que desistirNos tira o chão, nós cria asa, fé não vai tirar de mimAbençoada por meus ancestraisO que eu tiver eu devo a eles, divido com meus iguaisPra minha vó tanto faz o que é punchlineDesde que seja verdade e comunique a todos nós 
Quando a Cristal diz que seus passos vieram de longe e a trouxe até aqui. Eu entendo que ela quer passar, que a caminhada dela começa com seus ancestrais ou simplesmente com pessoas que vieram antes dela, onde tudo era mato e graças a essas pessoas, hoje ela consegue fazer os corres dela. 

Esse respeito aos mais velhos (principalmente a sua vó) da Cristal me fez lembrar um ditado africano que eu havia visto na internet e fui pesquisar sobre de quem era. 

Detalhe importante: A Cristal fez questão de mostrar esse som onde ela cita sua vó, e mostrou a reação dela num storie do Instagram. 

Existe um ditado assim: “Quando morre um africano idoso é como se se queimasse uma biblioteca” 

Essas palavras foram ditas pelo poeta do Mali, Amadou Hampaté-Bâ. 

Nessa sociedade ocidental eurocêntrica em que vivemos, o mais velho não tem muito valor, vide como nosso governo e a sociedade jovem diz e trata os idosos e como sua memória é facilmente apagada. Mas numa sociedade tradicional africana, o mais velho tem como principal a função transmitir oralmente às demais gerações, a cultura e a sabedoria popular vivida em cada comunidade. Na visão africana, os mais velhos são como guardiões de memória e tudo que por eles é contado, tem que ser atenciosamente ouvido e preservado com muito zelo pelos mais jovens. Dito tudo isso, o mais velho é símbolo de autoridade e ocupa um lugar bem definido dentro de sua categoria social: repassar a sabedoria dos antepassados e perpetuar a cultura. 

Pela construção dos versos e postura da mc gaúcha, essa transmissão oral tem surtido muito efeito. 
O que eu conquistar vai voltar pra minha baseSem base não tem começo, sem começo nem tem topo, niggaAntes de escolher comprar Nike ou AdidasCertifica que tem banquete pra gente encher a barriga 
Toda a construção direta ou indireta dos versos da Cristal faz referência a família. Mas nesta parte a Cristal manda o papo de que onde ela estiver, ela sempre vai lembrar e cuidar dos seus. 

Lendo o artigo ‘A família como base do Pan-Africanismo’ do Rodrigo Souza, li uma frase que me lembrou muito a construção e a ideia que passa neste som. Se liga: 

“A lealdade à origem é uma maneira de tu se manter em conexão com suas raízes”. 

É uma frase muito forte e bem verdadeira. Claro que sempre tem ramelões que quando tem um certo destaque em algo esquece sua quebrada ou sua família. Porém é algo muito nosso, gente preta, sabe? sempre estar cultivando nossas raízes e mantendo essa conexão seja lá onde a gente for. Sempre buscar um progresso, mas não só, sempre tentando fazer uma ponte para que outras pessoas atravesse ela junto com a gente. 
Não se deslumbra com o caminho ou vai ficar sozinha
Querem que a corrente seja nossa maior conquista
Mal eles sabem os plano que tá na lista
Eu com 18, nova rica, fortalecendo a família 
Ela termina sua participação com uma ideia foda e muito pertinente. 

Eu entendo que quando ela diz para não se deslumbrar e que querem que a nossa maior conquista seja uma corrente. Ela se refere a mc’s e pessoas comuns que se contentam em ostentar coisas, sem se preocupar se seus iguais estão bem, tá ligado? Isso é o jogo do capitalismo, eles querem nos ver gastando e incentivando o consumo. Eles não querem que temos uma educação financeira. O sistema não quer ver pretos bem, eles querem ver pretos no melhor estilo clichezão de jogadores de futebol, trappers e etc. 

Crédito das imagens:
Maysa Zucheratto @maysazucheratto 
Roxie @akaroxie

PROSPERIDADE 
Na fome do que eu nunca tive
Eu me cuido pra não dar indigestão
Ser cercado de globais
Ou um rolé sincero com seus irmão?
Dos que não só zoou, mas suou
Quando a nave era um carrinho de mão
Não se realiza sozinho
O que se sonha em comunhão, oh 

O álbum em si já fala muito sobre coletividade, tá ligado? Em entrevista ao RAPTV, o Djonga diz que se seus amigos estiverem felizes e ele estiver feliz, tá tudo bem. 

“Mano, para pra pensar: que que adianta... beleza, eu tô bem, tô com 1 milhão na conta, tranquilão e todo mundo passando dificuldade. Então assim... não dá pra curtir, como que nós vamos curtir? Sendo que um consegue comer no restaurante mais caro e outro as vezes não consegue nem comer?
O espirito coletivo é nesse sentido mesmo, se não for nós todos... nós todos bem, não adianta um só estar bem. É aquilo, enquanto um for escravo, nenhum é livre. Disse o rapper mineiro.” 

Essas ideias da entrevista, junto com as ideias em que o Djonga rima no som, me lembrou muito uma frase do irmão ZAUS KUSH que eu li esses dias em minhas pesquisas. 

“A ideia Africana de prosperidade é um rio passando pelas nossas terras; a eurocêntrica é uma represa”. 

Entendeu o conceito? Nosso progresso tem que ser estender a nossa família, e como foi dito lá em cima, amigos e os ditos parentes que também são família. Se a sua visão de prosperidade for você numa mansão, você está agindo segundo a visão eurocêntrica de progresso. Onde ela é egoísta e não deixa a prosperidade (rio) seguir seu caminho e regar tudo por onde ele passa, no caso você. 

COMENTÁRIO FINAL 

Em meio a essa pandemia mundial de covid-19 (Corona Vírus), em que pessoas tem ido aos supermercados e feito compras mais que necessárias, sem pensar que o mais pobre ainda não vai conseguir comprar porque não chegou o dia do pagamento. (que geralmente é final do mês ou dia 5) Essa música vem como um acalanto para nossos ouvidos, coração e alma. Uma música que prega e inspira o sentido do coletivo e não do eu, é muito importante e mais que necessária. Ela nos ensina amor a nossa família e principalmente ao mais velhos e prosperidade a todos os nossos, todos que queremos bem. 


Ver que conceitos africanos ainda estão vivos entre nós, mesmo que inconscientemente, é muito importante e reconfortante. Afinal vivemos em tempos em que o conservadorismo político e religioso eurocêntrico já faz parte até do rap, aliás há muito tempo, desde o fim dos anos 90, diga-se de passagem. 

Para terminar quero deixar uma frase do grande ativista sul-africano que morreu em nome de suas crenças, Steve Biko. 

“Acreditamos que, a longe prazo, a contribuição especial da África para o mundo será no campo de relações humanas. As grandes potências mundiais podem ter realizado maravilha ao dar ao mundo uma aparência industrial e militar, mas o grande presente virá da África – dar ao mundo uma face mais humana”.

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Fontes usadas para compor essa resenha:

Três coisas que você não sabe sobre a família africana!

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