Dica de Livro - "Filhos da Pátria" do escritor Angolano João Melo
Nem o relato mais jornalístico dá conta de tanta verdade. O angolano João Melo parece saber disso. Nos contos de Filhos da pátria – título mais do que acertado – ele reúne histórias que não retratam apenas a realidade; isso é pouco. O autor olha nos olhos de seus personagens e faz um clique armado, como se lhes roubasse a alma africana. Nada muito literário no sentido de um arranjo de texto artesanal, mas o que se conta é devastador. Pausa para uma breve explicação. Este é um livro de 2008. Não é lançamento, claro. Em tempo: a ideia da coluna não é comentar apenas lançamentos; um livro publicado há alguns anos pode merecer uma repescagem – por que não?
O tema em foco na maioria das histórias de Filhos da pátria é sempre atual, já que fala dos deslocados da sorte e das disparidades sociais de um país eternamente em guerra, mesmo quando não declarada. A pigmentação da pele é tratada como um assunto muito relevante. João enumera os diversos tons de pele do povo angolano que vão desde o que chama “preto genuíno”, passando pelo pardo “tipo papel de embrulho”, o cinzento e, claro, o branco, que quase nunca é visto como um genuíno angolano, pois é confundido com os colonizadores.
João Melo não tem a pretensão de dar respostas, muito menos apresentar soluções para um país de mapeamento tão difícil. Faz sim uma “investigação ficcional”, como define, que tem como ponto de partida o cotidiano angolano, esmiuçado até a medula. “Até onde é capaz de ir a capacidade de humilhação de um ser humano?” – eis a pergunta que norteia o livro. João prossegue trançando a corda bamba da trajetória humana, explorando também o ridículo: “(…) o ridículo espreita sempre por detrás de qualquer experiência humana, mesmo da mais grandiloqüente (…)”, escreve o autor logo na primeira história.
O tom oscila entre a dor da humilhação, em contos como “Tio, mi dá só cem” e “Feto”, (história de uma prostituta diante de um filho abortado), por exemplo, indo até o humor enviesado pelo ridículo, em histórias como a hilariante “O efeito estufa”. O discurso do bacalhau é aí forte e impagável. Eis um trecho: “Como é que um peixe que tem a obrigação de ser civilizado se deixa apanhar à toa pelos portugueses, esse povo atrasado à beira-mar plantado, essa raça de cambutas, que ainda ontem eram camponeses (…) é com um animal alheio que os tugas nos querem continuar a colonizar e, ainda por cima, pelo estômago, que é o nosso ponto fraco, pois todo o mundo sabe que somos uma cambada de subnutridos!… (…) Acredita no que te digo: o bacalhau é o cavalo de Tróia utilizado pelos portugueses para continuarem a ter os angolanos na mão!”
A disposição dos contos ajuda a compor um ritmo de leitura em que a realidade abrupta não sufoca. A própria maneira de narrar, com alguns comentários acerca da opção por uma palavra e não outra, também contribuiu para “arejar” o texto. De qualquer forma, a realidade está ali. De corpo e alma africanos. Para auxiliar a leitura, a edição conta com um glossário de palavras angolanas.
Escrito por Claudia Nina
Galera, leiam o livro Filhos da Pátria (contos), do angolano João Melo. Segue trecho do conto “Tio mi dá só cem”, da presente obra.
“(…), é demais, tio, eu não aguento, mi dá só cem, tio, estou com bué de fome, não, tio, não diz que não, tio, a minha garina foi embora, a minha fome é do tamanho da minha dor, eu tenho muita vontade de chorar mas ainda tenho uma kilunza na mão, tio, porra, não me provoques, você ouvistes bem, não me provoques, tio, mi dá só cem, mi dá só cem mesmo, tio.”